‘Existe violência até nas histórias bíblicas’, diz Tony Ramos

LÍGIA MESQUITA
O ator Tony Ramos (Zô Guimarães/Folhapress)
O ator Tony Ramos (Zô Guimarães/Folhapress)

Tony Ramos, 67, lança um desafio à coluna, para comprovar o sucesso de “A Regra do Jogo” (Globo): acompanhá-lo por um dia nas ruas e contar quantas pessoas o cumprimentam batendo no peito e dizendo “Vitória na guerra, irmão”.

O gesto e a expressão são usados por seu personagem Zé Maria e pelos criminosos da “facção” na novela de João Emanuel Carneiro.

Para ele, essa receptividade do público mostra que não existe rejeição à trama por causa de violência.

Nesta semana, a novela voltou a ter ibope na casa dos 30 pontos, o que não ocorria desde a estreia, em 31/8 (em SP, cada ponto equivale a 67 mil casas).

“Queria que você visse a reação nas ruas. Não adianta eu te falar porque senão fica uma defesa corporativista, e detesto corporativismo”, diz.

Você disse que se fala que a novela tem violência e isso poderia ser um fator de oscilação do ibope. As pessoas não querem realidade na televisão?
Não digo que as pessoas achem violenta a novela. Acho que as pessoas estão muito estressadas, há uma crise grande no país . Então, quando veem a realidade, podem dizer “não quero ver isso”. Mas, quando a história tem absoluta força de dramaturgia, como a nossa tem –e jamais vou abrir mão disso, não subestimo o público, que é soberano–, taí a audiência subindo. As pessoas falam muito de “Breaking Bad”, que é de violência absurda e muitos adolescentes amam. Então essa hipocrisia não cola comigo. O sucesso não se impõe nunca porque alguém ache ou não a novela violenta, mas por um bom texto, um bom conflito. Pode ter demorado um pouco para o público ir conosco nessa, mas hoje ele está indo.

A concorrência com “Os Dez Mandamentos” influenciou para essa demora?
Não. São histórias diametralmente opostas. Aliás, você está falando com um ator que defende a livre e boa concorrência. Isso é bom para todos, atores, diretores, produtores. E para a TV Globo, não se iluda. Concorrência é saudável. Agora, tem quem prefira uma história mais romântica. E existe violência até nas histórias bíblicas. “Os Dez Mandamentos” cumpriu um caminho lindo, merece aplausos. Mas a nossa novela se impõe porque ela tem uma história ótima.

As novelas não estão dando mais o ibope que davam…
[Interrompendo] Essa história não é nova. Fiz “Rainha da Sucata” concorrendo com “Pantanal”! Se analisar com frieza, dar 35 pontos hoje, com a multiplicidade de oferta, é um baita sucesso. A novela como a conhecemos e é contada no mundo, ela se renova. “Meu Pedacinho de Chão” foi uma renovação.

O público é conservador?
Temos que ter humildade de saber que vivemos em comunidade e que existem “n” reações. Por isso tem que encontrar a prudência de entender que há um conservadorismo que sempre existiu e existirá. Tem pessoas que se constrangem em ver um beijo no meio da rua.
Liberdade é você entender o próximo.

As novelas devem se render ao que o público quer?
Não devem e não vão. Porém, não têm o direito de achar que o público é obrigado a aceitar o que você quiser fazer. Mas tem um detalhe fundamental, tem que saber como fazer uma de cena nu, na cama, às 21h50, com crianças na sala. Isso não é censura, é bom senso. Temos que entender a língua portuguesa, o que é bom senso, autocensura, adequado ou não.

Após a polêmica do beijo gay de “Babilônia”, a Fernanda Montenegro disse que os preconceitos todos estavam saindo do armário.
O fato de as personagens da Nathália Timberg e da Fernanda Montenegro terem se beijado, e as pessoas se escandalizado, me surpreendeu. Surpreendeu terem ainda esse tipo de comportamento. Foi um beijo tão delicado, se alguém se indigna com isso é porque tem algum tipo de preconceito embutido e não percebe.

 

O fato de agora o público saber exatamente quem é o Zé Maria mudou algo na sua maneira de interpretá-lo?
Tenho uma visão não-linear, mas muito clara na hora de compor a personagem. Trabalho com ferramentas que o autor me fornece, e o João me deu todas. Vou criar um único Zé Maria, um homem que tem essa dualidade, a obsessão em proteger o filho e a dualidade de matar, é uma loucura. E é essa dualidade que torna a novela excepcional, na minha visão. Nunca me preocupei em como passar essa dualidade para o público. Nunca me atenho, acredite ou não, em “ah, aqui vou fazer isso, ali, aquilo”. Só leio o que está nas entrelinhas do texto, o que o autor escreveu e ouço o que o diretor me pede. Faço o que está no texto. Quando você começa a querer inventar demais, a rechear, fica além.

 O ofício do ator também se renova junto com as novelas?
Sempre. Atuar é entender uma personagem e as entrelinhas de um texto. Isso na TV, no teatro, no cinema e não muda. Não é prestar atenção se é no HD, em 4K. Isso é detalhe técnico. Ator tem que se ligar na história que está vendendo, interpretando, no personagem que abraçou. O resto deixe com os técnicos, com a direção e mergulhe na alma dos personagens. O ator não tem que pensar se a lente é 85, grande angular.